domingo, 25 de outubro de 2015

NINE – UM MUSICAL FELLINIANO





Guido, O Homem e Seus Sonhos

por Fábio Dantas

                    
                    “Tudo está confuso de novo, mas esta confusão sou eu; como eu sou, não como eu gostaria de ser. E eu não tenho medo de dizer a verdade agora, o que não sei, o que estou procurando. assim eu me sinto vivo e posso olhar em seus olhos leais sem sentir vergonha. A vida é uma festa, vamos vivê-la juntos. Eu não posso dizer mais nada, para você ou para os outros. Aceite-me como eu sou, se você puder ... é a única maneira de podermos tentar encontrar um ao outro.”
(Guido Contini)



Guido! Guido! Guido!
                    
                    A criação artística é um deleite maravilhoso – e doloroso, regado a suor e sangue. Artistas podem ser seres iluminados, muitas vezes vivendo em uma realidade paralela, com um pé no chão e outro nas estrelas; contudo, são humanos, carnais, imperfeitos e inseguros. Sempre lidam com a perfeição e a imortalidade; sempre são confrontados com sua imperfeição e mortalidade. Estão entre o divino e o humano, o sagrado e o profano. É como viver no paraíso, sem ser um anjo. Guido Contini é um artista, um diretor de cinema. Que depois de atingir mais um êxito, se prepara para seu próximo projeto. E se depara com uma crise existencial e um bloqueio criativo. Inseguro, angustiado, se sentindo sufocado pela mulher, pela amante, pela produtora, pela Musa, por uma jornalista, pela mãe e pelos amigos, Guido mergulha em uma jornada interna metalinguística e jungiana, misturando presente e passado, realidade e ficção.
                    
Karen Junqueira, Leticia Birkeuer, Totia Meireles, Myra Ruiz, Malu Rodrigues, Beatriz Segall, Nicola Lama e Carol Castro

                    O musical Nine foi escrito por Maury Yeston como uma livre adaptação-homenagem a 8 ½ , o icônico filme do gênio Federico Fellini, de 1963. Obra-prima indiscutível, o filme rendeu a Fellini seu terceiro Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e o de Melhor Figurino em P&B para Piero Gherardi, tendo ainda recebido indicações para melhor Direção e Roteiro (Fellini) e Direção de Arte em P&B (Gherardi). Fellini não fez maiores objeções ao musical, apenas pedindo que seu nome e o título do filme não fossem relacionados. Nine estreou na Broadway em 1982, dirigido por Tommy Tune e estrelado por Raul Julia e teve um remake em 2003, dirigido por David Leveaux e estrelado por Antonio Banderas. Em 2009, o mediano Rob Marshall dirigiu uma versão pálida, com Daniel Day-Lewis como Guido Contini.
                    
 
Leticia Birkeuer, a jornalista

Sonia Clara, a mãe
 
Totia Meireles, a produtora

                    Charles Möeller e Claudio Botelho assinam a versão brasileira de Nine, que foi escolhida para inaugurar o novo Teatro Porto Seguro em São Paulo e agora segue sua temporada carioca . A dupla genial que conferiu um status inédito aos musicais no Brasil tem feito da memória um dos temas recorrentes de suas obras. Cole Porter – Ele Nunca Disse que Me Amava, Company, Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos tem em sua estrutura a evocação da memória e a construção de um inventário afetivo. Nine, com legitimidade, integra este grupo. Com seus parceiros de tantos espetáculos que fazem a Möeller & Botelho ser a força que é, devemos ser gratos por uma carreira tão irretocável como a da dupla.

 
Myra Ruiz e Luiz Felipe Mello, Saraghina e Guidinho

                    O elenco sempre é um triunfo nas obras de Möeller e Botelho, que trabalhando com atores experientes ou iniciantes, sempre obtém um rendimento excepcional de seu elenco. Em Nine, infelizmente, isso não acontece. Há uma clara discrepância de rendimento do elenco, inclusive em personagens centrais, o que compromete o resultado. Por exemplo, Leticia Birkheuer e Karen Junqueira ainda não tem o preparo vocal que suas personagens necessitam, embora sejam mulheres muito belas e cativem o olhar. No caso de Letícia, absolutamente belíssima, sua carreira de modelo é um ponto de aproximação com a jornalista fashion Stephanie. Sonia Clara Ghivelder - que alterna a mãe de Guido com Beatriz Segall - é uma figura forte e imponente, fazendo da cena da conversa entre Guido e sua mãe uma das passagens mais interessantes. Totia Meireles, estrela do primeiro time do teatro musical brasileiro, é exuberante como de costume como a produtora de cinema Lili La Fleu. Myra Ruiz, como Saraghina, é excelente. Com a cena e canção mais emblemáticas do espetáculo, um momento de nostalgia e poesia enraizados no coração de Guido, Myra brilha. E brilho é um atributo abundante quando se trata de Malu Rodrigues. Sua Carla Albanese é fascinante. E Malu segue encantadora, com talento dramático a cada dia mais burilado e na condição de mais bela, preparada e límpida voz do teatro musical brasileiro. Todas essas mulheres desfilam e giram em torno de um Sol: Guido Contini. E é exatamente como um Sol que Nicola Lama e Luiz Felipe Mello se mostram em Nine. O pequeno Luiz Felipe é cativante. Talentoso, concentrado e gracioso, compõe um pequeno Guido inesquecível. Que tenha carreira longa! E Nicola Lama Como o Guido adulto se inscreve como um dos grandes nomes do teatro musical brasileiro. Sua performance une extrema intensidade e sofisticação. Nicola modula brilhantemente a angústia, a incerteza, a instabilidade emocional do artista em crise e o dilema existencial, a nostalgia e o charme até certo ponto infantil, e por isso mesmo mais irresistível, de Guido. Guido é um grande homem, e como todos os grandes homens, ainda um grande menino. Nicola vive isso plenamente e merece todos os bravos! possíveis. Além disso, a cena quase ao final em que os dois Guidos se encontram, dialogam e se confortam mutuamente, é uma das mais belas e comoventes vistas nos palcos brasileiros recentemente. De fazer lágrimas transbordarem. 

Carla, a amante
Guido Contini

                             Nine trata da jornada de um homem, de seu presente, sua carreira artística, sua força como criador. E de sua memória, suas relações, seus laços com os que passaram eu sua vida. Algo que pode tocar mais especificamente artistas em suas crises, mas que é tema caro para o qualquer ser humano.

NINE – UM MUSICAL FELLINIANO

Um espetáculo de Charles Möeller & Claudio Botelho

Elenco

Nicola Lama - Guido Contini
Carol Castro - Luisa Contini  - A Esposa
Totia Meireles - Lili La Fleur - A Produtora
Malu Rodrigues - Carla Albanese  - A Amante
Karen Junqueira/Vanessa Costa - Claudia Nardi - A Musa
Leticia Birkeuer  - Stephanie - A Jornalista
Beatriz Segall/Sonia Clara - Mãe de Guido
Myra Ruiz - Sarraghina - A Prostituta
Renata Vilela  - Nossa Senhora do Spa
Camilla Marotti - Veronica
Lais Lenci  - Francesca
Lola Fanucchi  - Rossella
Isabella Moreira - Giulietta
Priscila Esteves - Sofia
Luiz Felipe Mello - Guidinho

Ficha Técnica

Direção Musical e Versão Brasileira: Claudio Botelho
Cenografia: Rogério Falcão
Figurinos: Lino Villaventura
Coreografias: Alonso Barros e Charles Möeller
Design de Som: Ademir Moraes Jr.
Design de Luz: Paulo Cesar Medeiros
Direção Musical e Regência: Paulo Nogueira
Visagismo: Beto Carramanhos
Coordenação Artística: Tina Salles
Produção Executiva: Edson Lopes
Edição de Conteúdos de Websites e Redes Sociais: Leo Ladeira
Uma Produção: Möeller & Botelho e Conteúdo Teatral

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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A MOÇA DA CIDADE





Muito Além do Previsível


por Fábio Dantas


               Artistas são seres especiais. Inquietos, inventivos, às vezes inconstantes, sempre tentando atingir o equilíbrio entre o mundo de todos e o seu mundo particular, navegando entre o real e o imaginário, sempre recolhendo estrelas... Ou como diria o poeta Manoel de Barros : "Meu filho, você vai ser poeta/ Você vai carregar água na peneira a vida toda/ Você vai encher os vazios com suas peraltagens/ E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos". Mais que excentricidade ou afetação, artistas pensam, percebem e sentem de outra forma.                        
               Ambrosina, protagonista de A Moça da Cidade, não é uma artista; mas tem em comum com estes todas as características citadas acima. Imigrante nordestina, sonha desbravar e conquistar o Rio de Janeiro, e ainda encontrar o amor. Rodrigo Pandolfo, diretor de A Moça da Cidade, é um artista. É um cantor bissexto. Mais que tudo, é um ator excepcional, um dos grandes a surgir em muito tempo, que causou forte impacto em Cine-Teatro Limite, de Pedro Brício, e O Despertar da Primavera, versão brasileira de Charles Möeller e Claudio Botelho para Spring Awakening, de Duncan Sheik e Steven Sater, versão musical da obra de Frank Wedekind, de sucesso triunfal na Broadway . Um jovem ator superlativo assim já é algo extremamente raro. Quando além disso, ainda arrisca sair de sua zona de conforto, em plena curva ascendente de sua carreira, e decide se aventurar na direção tão cedo, é um fato a ser comemorado. Tal qual Ambrosina, Pandolfo quer ir além...

Rodrigo Pandolfo, estreando na direção
                O texto de Anderson Bosh trata do ir além almejado pela protagonista. Esse se dá metalinguisticamente, através da radionovela A Moça da Cidade, que conta as desventuras de Ambrosina no Rio de Janeiro. A ideia é bastante interessante e, valoriza bastante o texto de estrutura extremamente simples. São claras as referências e alusões para com A Hora da Estrela, romance de Clarice Lispector. Certamente o recurso de metalinguagem da radionovela dentro da peça enriquece bastante a estrutura dramática do texto.
Radionovela versus Vida Real
                 É absolutamente bonita e inteligente a estreia de Pandolfo na direção. Com todos os elementos exacerbados que o texto traz, quase uma ode ao kitsch, seria muito fácil a montagem cair na caricatura. A mão precisa do diretor não permite que isso aconteça em momento algum. Há muito humor, há o patético, há o ridículo, há o clichê, mas tudo conduzido com extrema maturidade e sobriedade, formando um conjunto realmente surpreendente. Há o uso de projeções em telão, item que parece ter se tornado obrigatória em quase todas as montagens teatrais, mas mesmo esse recurso acaba contando pontos a favor, como em uma irresistível cena de Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire), adaptação cinematográfica de Elia Kazan para a peça de Tennessee Williams, onde Ambrosina contracena com o Stanley Kowalski de Marlon Brando. O diretor também é o responsável pela escolha da trilha sonora do espetáculo, que obviamente remete ao período das radionovela e do cancioneiro brega-romântico brasileiro. O tom que Pandolfo imprime ao espetáculo é extremamente elegante, enaltecendo os elementos nostálgicos do texto e respeitando as características dos personagens, especialmente nos momentos dramáticos, especialmente no final.      

Ambrosina (Lu Camy), encantada com Marlon Brando em Um Bonde Chamado Desejo

               O elenco conciso rende muito bem e está muito afinado e adequado aos seus personagens. Dida Camero (na temporada que estreia hoje substituída por Victor Varandas) é uma atriz extremamente interessante, de presença forte, que preenche o palco com intensidade. Gabriel Delfino Marques resolve muito bem as diferenças entre os diferentes homens de Ambrosina, seja o amante idealizado e irreal, seja o verdadeiro apaixonado, que ao se desnudar afetivamente para a protagonista oferece um dos momentos mais pungentes e bonitos da peça. Lu Camy, como a protagonista, enfrenta o desafio de desenvolver um personagem que vive o tempo todo no limiar do caricato, e se sai muito bem, evitando qualquer nota fora do tom e driblando com inteligência as armadilhas que encontra pelo caminho. No final, particularmente, assume um ar severo que mostra o autoridade e segurança sobre as diversas fases de seu personagem.

Camero, Cammy e Marques embarcam e felizes vão...

Marques e Camy: desenganos do amor
Ambrosina e sua ânsia de ir além
              A Moça da Cidade é uma grata surpresa, mostrando que boas ideias podem ser muito bem executadas, mesmo que com simplicidade. E uma belíssima estreia na direção para Rodrigo Pandolfo, que certamente pode almejar muito mais que ser o brilhante ator que já é.



A MOÇA DA CIDADE


Texto: Anderson Bosh

Direção: Rodrigo Pandolfo

Elenco: Lu Camy, Gabriel Delfino Marques e Victor Varandas (na temporada atual, substituindo Dida Camero)

Direção musical: Marcelo Alonso Neves

Trilha sonora: Rodrigo Pandolfo

Preparadora corporal: Ana Achcar

Direção de movimento e coreografias: Victor Maia

Iluminador: Tomás Ribas

Cenário: Miguel Pinto Guimarães


Figurino: Bruno Perlatto

Visagismo: Sid Andrade

Direção de vídeo: Felipe Bond

Direção de produção: Tatianna Trinxet



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